Tudo isto soa muito bonito na teoria: ciência é ciência e religião é religião; psicologia é ciência e, portanto, não pode se misturar com nenhuma religião ou misticismo; os psicólogos devem se utilizar somente de técnicas fundamentadas cientificamente e reconhecidas por instâncias oficiais. E zéfini! Mas será que, realmente, é assim que acontece? Primeira questão: será que a Psicologia é realmente uma ciência? É uma questão muito complexa mas, sob o risco de ser leviano e não entrando em pormenores teóricos, arrisco uma resposta: em grande parte não! Afinal, quem de fato faz ciência na Psicologia? Um psicólogo clÃnico atendendo em seu consultório é um cientista? Obviamente não. Ele pode até se embasar em estudos cientÃficos, mas o atendimento em si não tem como ser cientÃfico. É uma relação humana individualizada e complexa, sujeita a diversos "viéses". Não há controle. É uma relação de ajuda, não de investigação cientÃfica.
Neste sentido, levar a cabo o princÃpio da cientificidade na Psicologia, significaria excluir grande parte das teorias e atuações psicológicas. Afinal, a psicanálise, por exemplo, é uma ciência? Muitos psicanalistas afirmam categoricamente: não! Mas isso desmerece e tira toda a legitimidade das teorias e práticas psicanalÃticas, amplamente disseminadas no Brasil? Claro que não. Enfim, se o CFP resolver cassar o registro profissional de todos os psicólogos que não praticam ciência, vai sobrar muito pouca gente. Mas também permitir que qualquer psicólogo diga ou faça qualquer coisa também não me parece correto. É preciso haver uma regulamentação.
E aÃ, chegamos em uma questão crucial: quais são, afinal, as tais "teorias, técnicas e metodologias, pesquisadas, reconhecidas e validadas", referidas na nota pública do CFP? Existe, por acaso, alguma resolução que liste ou indique quais "teorias, técnicas e metodologias" são permitidas de serem empregadas pelos psicólogos? Na contramão, existe alguma resolução que especifique quais "teorias, técnicas e metodologias" estão fora do âmbito da Psicologia e, portanto, caso sejam utilizadas, configurariam infração pelo psicólogo? Mais uma vez a resposta é negativa.
Em 1994 o CRP-03, da Bahia, chegou a emitir uma resolução vetando ao psicólogo a publicidade de algumas práticas ditas "alternativas", tais como astrologia, numerologia, cristaloterapia, terapia energética, psicoterapia xamânica, psicoterapia esotérica, terapia da transmutação energética, terapia regressiva de vidas passadas, psicoterapia espiritual, terapia dos chacras, terapia dos mantras, terapia de meditação, psicoterapia do corpo astral e trabalho respiratório monhâmico (fonte). Interessante constatar que o que foi vedado foi a publicidade, não o emprego de tais práticas.
No ano seguinte, o CFP publicou a Resolução 016/95, que mantinha a orientação do CRP-03 e acrescentava outras práticas: tarologia; quiromancia; cromoterapia; florais; fotografia kirlian e programação neurolingüÃstica. Posteriormente, a PNL foi retirada desta resolução, tornando-se uma prática "reconhecida". No entanto, pelo que pesquisei, tal resolução foi revogada. Desconheço os motivos. Em 2000, o CFP emitiu uma resolução autorizando e regulamentando o uso da hipnose como técnica complementar ao trabalho do psicólogo e, em 2002, foi a vez, da acupuntura. Desta forma, somente a hipnose e a acupuntura são regulamentadas pelo CFP como práticas complementares. Todas as outras técnicas "alternativas" não são, legalmente, nem permitidas nem proibidas. No entanto, existe um entendimento extra-regulamentar dos CRPs e do CFP sobre as terapias "alternativas" e sobre a "mistura" psicologia-religião: eles são contra! Não sabem muito bem porque, mas são contra mesmo assim. Só que, a despeito desta posição crÃtica dos conselhos, muitos e muitos psicólogos continuam a se utilizar de técnicas e abordagens mÃstico-religiosas, alheios a toda esta discussão.
Para finalizar este post, gostaria de citar aqui dois trechos da conclusão da tese de doutorado “As terapias alternativas no âmbito da Psicologia: conflitos e dilemas†(disponÃvel aqui), defendida em 2010 pela minha amiga e ex-colega de trabalho, Rosana Cognalato no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
“Diante de toda essa diversidade que é a psicologia e diante da sua pretensa cientificidade, ela se apresenta como um território fértil para a utilização das ‘terapias alternativas’, o que deixa os Conselhos numa situação bastante desagradável, tendo em vista que a sua função é a de resguardar a identidade/especificidade e a dignidade legÃtima dessa profissão. É como se os Conselhos quisessem que a psicologia fosse o que ela ainda não é, mas precisa ser, para ser uma profissão séria, funcional e competente. O que traz a noção implÃcita de que seriedade e cientificidade são sinônimos, indissociáveis.
E conclui: "A relação da psicologia com as terapias alternativas, a partir da sua constituição enquanto 'ciência', de forma tão própria e tão especial, a tornou uma precursora, diante da sua atração pelo 'alternativo'. A cientificidade cambaleante da psicologia a coloca numa condição dubiamente conflitiva e confortável, a partir das indefinições que as terapias alternativas suscitam, e que estão mais explÃcitas na psicologia do que em qualquer outra ciência. Independente disso, todas elas 'misturam'. Nenhuma ciência é pura".