Psicologia
Hetracil e a medicalização da homossexualidade
Durante uma aula, um colega mencionou a existência de uma medicação criada nos Estados Unidos com o objetivo especÃfico de "tratar" a homossexualidade. Pesquisando sobre ele na internet, caà no site do produto, chamado Hetracil. Logo na página inicial do site, ilustrada com a imagem de uma famÃlia margarina passeando pela praia, descubro que o Hetracil "é a medicação anti-efeminante mais largamente prescrita nos Estados Unidos, ajudando 16 milhões de americanos que sofrem com o Transtorno Comportamental Efeminado e Homossexualidade Masculina" (tradução minha). Se alguém me falar que este site é falso, "pegadinha do malandro", eu acredito. Porque, ele é todo absurdo! Em primeiro lugar, logo de cara, uma nova categoria de medicamento é criada e, a reboque, um novo transtorno mental. Mas o site não para por aÃ. Na seção "Informação sobre a doença", lê-se o seguinte:
Mais de 80 milhões de americanos sofrem de algum tipo de homossexualidade, e uma em cada oito pessoas precisam de tratamento para a homossexualidade durante a sua vida. A homossexualidade não é uma falha de caráter, não é nem um "modo" nem uma fraqueza pessoal que você pode mudar à vontade. Muitos homens saudáveis ​​podem se identificar com alguns dos sintomas da homossexualidade, como experimentar fantasias sexuais com outros homens. Mas a homossexualidade é diagnosticada apenas quando essas atividades tomam pelo menos uma hora por dia, são muito estressantes, e interferem na vida diária. Nós encorajamos você a aprender mais detalhes sobre a homossexualidade com seu médico. Quanto mais você souber sobre a doença ("illness"), mais você pode manejá-la e se recuperar dela. (tradução minha)
Fala sério, tá com toda cara de sacanagem! Não pode ser verdade!!! Mas a idiotice ainda não terminou. Na seção "Pergunte ao seu médico" há uma espécie de check-list de perguntas para você fazer ao seu médico, como por exemplo: "Eu sou comportamentalmente afeminado? De que forma?", "Que tipo de afeminamento eu tenho?". Finalmente, na seção de perguntas e respostas, há várias pérolas. Reproduzo apenas uma:
Eu comecei o tratamento para a minha homossexualidade com HETRACIL. Quanto tempo deve demorar para HETRACIL para começar a funcionar? O primeiro objetivo do tratamento é aliviar os sintomas da homossexualidade que estão perturbando sua vida. O alÃvio dos sintomas geralmente demora algumas semanas, embora alguns sintomas podem melhorar durante a primeira semana de tratamento. Pode demorar 8 ou mais semanas para experimentar os benefÃcios do tratamento com HETRACIL. Certifique-se de discutir como está se sentindo com o seu médico durante o tratamento.Você deve saber que a duração recomendada de tratamento com um anti-afeminante é de 6 a 12 meses, porque um dos objetivos de longo prazo do tratamento é que a homossexualidade não lhe incomode novamente. (tradução minha)
Bom, pesquisei mais na internet sobre o tal Hetracil e descobri (neste link) que trata-se, realmente, de uma farsa, ou melhor, de uma "brincadeira séria" de um sujeito chamado Benjamin. Em uma entrevista (citada aqui), ele afirma que criou esta farsa com o objetivo de "estimular o debate sobre o cenário hipotético em que uma cura para a homossexualidade (ou, pelo menos, tendências femininas) se torna uma realidade. Quais seriam as conseqüências para a sociedade se a orientação sexual puder ser manipulada?", questiona ele. Supostamente, alguns cientistas já conseguiram reverter a orientação sexual... só que em moscas (veja aqui). Será que, algum dia isto se tornará possÃvel com humanos? O debate sobre a busca do "gene gay" ou da "cura gay" é muito complexo, extrapolando os objetivos deste post, mas proponho algumas reflexões.
VIDEO Sobre o "gene gay", vamos supor que, um dia, ele seja encontrado (e tem um bocado de gente procurando). Isto seria bom ou ruim? Existem partidários de ambos os lados. Segundo alguns, seria bom, pois provaria que ser gay não é uma escolha, mas algo constitutivo, inato. Segundo outros, seria ruim, pois descobrir que a homossexualidade é genética abriria a porta para perspectivas de tratamento. Dilema semelhante ocorre ao nos deparamos com pesquisas sobre o "cérebro homossexual" (saiba mais aqui). Existem pesquisadores escaneando cérebros de homossexuais e comparando-os com cérebros de heterossexuais, buscando, com isso, avaliar se há diferenças. Muitas crÃticas podem ser feitas à pesquisas como estas. A mais básica é: como separar claramente homossexuais de heterossexuais? Como saber, com certeza, se o sujeito, entendido como homossexual, não é, na verdade, bissexual ou pansexual ou assexuado ou homossexual somente nos fins de semana? A sexualidade humana é muito mais complexa do que fazem supor as categorias homossexual e heterossexual. A famosa Escala de Kinsey já apontava para isso no inÃcio do século passado. Assim, como comparar o cérebro de homossexuais e heterossexuais sendo que estas categorias são tão questionáveis e a sexualidade humana tão dinâmica e fluida?
Uma segunda crÃtica que pode ser feita a estudos como estes é: quando comparamos a dinâmica cerebral de dois "tipos humanos" (homossexuais e heterossexuais, depressivos e não-depressivos, flamenguistas e vascaÃnos, etc) podemos até encontrar, em média, alguma diferença entre eles. Mas isto significa o que? Muito pouco. As imagens cerebrais não dizem nada sozinhas, isto sem falar que não são a reprodução fiel da realidade. Elas precisam ser interpretadas. As imagens não dizem se determinado padrão de atividade cerebral é patológico ou não. Quem diz isso são as pessoas. Por isso, considero uma ingenuidade afirmar, como alguns afirmaram na audiência na Câmara para discutir a tal "cura gay", que a ciência ainda não conseguiu mostrar de forma conclusiva que a homossexualidade não é uma doença, portanto ela pode ser. A ciência não tem como provar que a homossexualidade é ou não uma doença ou transtorno mental. Definições como esta são sempre o resultado de acordos coletivos, atravessados por múltiplos interesses e perspectivas e, portanto, dificilmente consensuais. Até a década de 70 a homossexualidade era considerada um transtorno mental pela Associação Psiquiátrica Americana. No DSM-III foi excluÃda em função de grande pressão do nascente movimento gay americano. Em uma votação, os psiquiatras decidiram pela retirada. Os partidários da "cura gay" utilizaram-se deste fato para demostrar (veja aqui) o quanto a decisão de retirar a homossexualidade do DSM foi uma decisão polÃtica, não cientÃfica. Só que eles não percebem que é desta forma que os TODOS os diagnósticos, especialmente no campo da psiquiatria, são concebidos. Há muito mais polÃtica do que ciência neste processo. E mais: ciência e polÃtica andam juntas, são inseparáveis.
Para finalizar este post, gostaria de trazer a clássica definição de medicalização do sociólogo Peter Conrad. Segundo ele, "medicalização descreve um processo no qual problemas não-médicos são definidos e tratados como problemas médicos, usualmente em termos de doença ou transtorno". É importante não confundir este conceito com o de medicamentalização, que descreve o processo em que cada vez mais problemas da vida passam a ser tratados com medicamentos. Este segundo conceito é abarcado pelo primeiro, mas não se equivalem. Tendo isto em vista, a homossexualidade é considerada por Conrad um caso clássico de desmedicalização, em que uma questão anteriormente concebida como problema médico passa a ser encarada não mais como uma doença, mas como uma diferença. O que nos traz de volta ao fictÃcio Hetracil. Sobre medicamentos como ele, talvez mais importante que nos perguntarmos se é possÃvel concebê-lo, é questionarmos se isto é desejável. E este questionamento vale para todas as propostas de "tratamento" da homossexualidade, sejam elas medicamentosas, religiosas ou comportamentais.
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