Neste momento, uma guerra está em curso no Brasil. De um lado, está a Psiquiatria, representada pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP); do outro, a Psicologia representada pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP). No centro da guerra o Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Em partes, trata-se de uma briga corporativa, uma disputa por mercado: a ABP defende o tratamento medicamentoso, o CFP, o tratamento psicológico. Mas o que está em jogo não é só isso. Mais profundamente, o conflito se deve à duas visões antagônicas do processo saúde-doença: uma biológica, outra psico-sociológica.
Na última sexta-feira, dia 13 de Julho, a ABP, em parceria com a Associação Brasileira de Déficit de Atenção (ABDA) e com o apoio de mais 27 entidades brasileiras, lançou a "Carta de esclarecimento à sociedade sobre o TDAH, seu diagnóstico e seu tratamento" (leia aqui) com o objetivo explÃcito de eliminar qualquer questionamento com relação à "existência" do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Implicitamente, esta carta é uma mensagem direta ao CFP, que acabou de lançar a campanha "Não à Medicalização da Vida" e ao Fórum sobre a Medicalização da Educação e da Sociedade (veja aqui e aqui), que em diversos eventos, campanhas, sites e textos, tem criticado a atuação da Psiquiatria e colocado dúvidas sobre a existência deste "suposto transtorno". Em um post do ano passado eu discuti esta questão, mas acho que não deixei muito clara minha visão.
Afinal, o TDAH existe? Sim, claro, sem dúvida. Mas existe porque foi criado. É uma invenção, real como todas as invenções. Concordo com o psiquiatra infantil - e meu professor na UERJ - Rossano Cabral Lima que, em seu excelente livro "Somos todos desatentos?", afirma: "Não duvidamos da existência do TDA/H, desde que se entenda que o transtorno existe como uma construção e não como um objeto autônomo e auto-evidente a partir do preenchimento de critérios diagnósticos ou da observação do funcionamento cerebral". Sob esta perspectiva, o inconsciente freudiano, da mesma forma que o TDAH, é uma invenção, que se tornou real a partir do momento em que foi inventado.
Numa interessante reportagem da revista Trip (leia aqui), Marilena Proença, professora da USP, conselheira do CFP e militante anti-medicalização, afirma que "TDAH não existe. O que existe são crianças diferentes, com formas de aprender diferentes. Algumas são mais focadas, outras mais dispersas. Não existe um padrão de aprendizadoâ€. A carta da ABP começa criticando exatamente os profissionais e pesquisadores que fazem afirmações como a de Marilena. Segundo a ABP, tais pessoas não são, de fato, cientistas, apenas "transmitem opiniões pessoais como se fossem informações cientÃficas". E mais: não são apenas equivocados, mas talvez mal-intencionados e, certamente, perigosos, afinal, "tais opiniões equivocadas são nocivas para pacientes, familiares e para a população como um todo". Tudo isto indica, pra inÃcio de conversa, que não é possÃvel - nem desejável - discordar dos cientistas, daqueles que detém o verdadeiro saber! Deve-se aceitar o que dizem, afinal a Ciência sempre tem razão, não é mesmo? Não devemos questioná-los, apenas reverenciá-los. Mas, como verdadeiros cientistas, que "provas" apresentam da existência do TDAH? Nesta carta, pelo menos, nenhuma. Utilizam-se apenas de argumentos de autoridade - do tipo "a OMS afirma que o TDAH existe, logo ele existe". Mas a OMS, em seu manual de doenças, o CID, já considerou a homossexualidade uma doença, deixando de considerar apenas em 1993. E mais: muitas coisas que não eram consideradas doenças hoje o são e outras que eram não são mais. Tanto o CID quanto o DSM mudaram - e mudam - enormemente entre uma edição e outra. Ou seja, o que a OMS diz ou deixa de dizer, neste caso, não prova nada, apenas dá autoridade e peso polÃtico ao argumento da ABP.
A ABP argumenta também que milhares de "publicações em bancos de dados" descrevem "claramente as graves consequências nas esferas acadêmica, familiar, social e profissional" do TDAH. Repito: descrevem as consequências, não "provam" a existência, não "provam" ser o TDAH um transtorno ou doença. Mas, a questão central, na minha opinião, é que eles não tem como provar. Afinal, como se pode provar cientificamente que o TDAH ou qualquer outro "suposto transtorno" é realmente um transtorno ou uma doença? O que é normal ou patológico nunca é algo evidente, dado, certo, mas é sempre produto de uma definição. E esta definição, por sua vez, é fruto de uma negociação permeada por interesses diversos (cientÃficos, financeiros, humanitários, etc). No caso dos transtornos mentais, a linha que separa o normal do patológico é definida oficialmente por um restrito grupo de psiquiatras norte-americanos, responsáveis pela atualização do DSM. E como este grupo define o que entra e o que fica de fora do manual? Através de acordos e negociações, entre o próprio grupo e entre este e a sociedade. É claro que dados de pesquisas são utilizados nos grupos de trabalho, mas, certamente, há mais polÃtica e menos ciência do que normalmente se acredita. A Psiquiatria, assim como a Psicologia, é bem menos objetiva do que tenta parecer. Feliz ou infelizmente, não sei.
Alguns podem argumentar: mas e as imagens cerebrais, não provam a existência do TDAH? Não. Mas como assim? Em primeiro lugar, grande parte, senão todas, as pesquisas neurocientÃficas sobre TDAH partem de um diagnóstico realizado anteriormente. Os pesquisadores, então, comparam a atividade cerebral dos "portadores" com os não-portadores (os "normais"), o que, segundo alguns pesquisadores, evidencia a existência do transtorno. Primeira coisa: tal diferença, evidenciada pelas imagens é causa ou consequência do transtorno? DifÃcil saber. Segunda coisa: caso exista uma diferença, na média, entre os padrões de atividade cerebral, como definir se determinado padrão é patológico? Já disse diversas vezes neste blog, mas volto a afirmar: as neuroimagens não falam por si, elas precisam ser interpretadas. E a interpretação de que certo padrão é patológico ou não depende de definições anteriores.
A carta da ABP critica ainda aqueles que afirmam ser a Ritalina perigosa e ter como principal objetivo tornar as crianças obedientes. Esta é uma das principais crÃticas à medicamentalização da vida: de que ela busca, pra dizer nos termos foucaultianos, normalizar as crianças, ou seja, torná-las "normais" - comuns, regulares, padronizadas. Esta visão negativa da Ritalina, conhecida também como a "droga da obediência", é amplamente disseminada pela sociedade - assim como a própria Ritalina -, tendo inspirado alguns clássicos epÃsódios de programas de humor como o South Park (baixe o episódio "Timmy 2000" legendado aqui) e os Simpsons (veja aqui legendado). Minha opinião, que já expressei em outras ocasiões neste blog, permanece: acredito que a medicação pode ser útil para certas pessoas em certas situações, mas percebo um exagero, um excesso de prescrições associado a um alargamento dos critérios diagnósticos. Além disso, tanto a perspectiva psiquiátrica quanto a psicológica, tendem a individualizar questões ou problemas que envolvem o contexto em que a pessoa está inserida. Tratar a pessoa, muitas vezes, significa, ignorar seu entorno. E a medicação, em muitos casos, tem sido o único recurso utilizado no "tratamento". Infelizmente.
No episódio do South Park, duas mães, cujos filhos foram diagnosticados com TDAH, conversam. A primeira afirma: "Tudo faz sentido agora. Eu nunca conseguia fazer o Stanley prestar atenção no avô dele quando ele contava histórias dos anos 30". A segunda, concordando, afirma, "Kyle fica tão agitado que as vezes ele corre e grita como um garoto de oito anos", ao que o próprio Kyle afirma "mas eu tenho 8 anos". Esta cena, explicita a principal crÃtica dos opositores do diagnóstico de TDAH, de que ele transforma em doença ou transtorno caracterÃsticas normais da infância - ou, pelo menos, de algumas crianças. Outra crÃtica, evidente na fala da primeira mãe, é de que o mundo mudou e as crianças também. Assim, como esperar que uma criança, e mesmo um adulto, vivendo no hiperativo século XXI se comporte como se vivesse no "tranquilo" mundo do inÃcio do século XX?
Sobre o método diagnóstico, a carta da ABP afirma ser eminentemente clÃnico, mas que isso não torna "frágil" o processo. A ausência de exames fÃsicos, afirmam eles, não fragiliza o diagnóstico de TDAH, da mesma forma que não fragiliza o diagnóstico de outros transtornos mentais, como o autismo e a esquizofrenia. O que eles não se dão conta é de que mesmo estes diagnósticos não são dados e certos, mas permanecem rodeados de inúmeras dúvidas e incertezas. Uma questão interessante é que tanto a ABP quanto a ABDA afirmam a todo momento que não há, de fato, nenhuma controvérsia sobre o TDAH (veja, por exemplo, aqui). Para eles é um fato cientÃfico inquestionável. Trata-se de um transtorno neurobiológico que traz sérias consequências para seus portadores e, portanto, deve ser tratado. O curioso é que, mesmo alegando haver consenso e não haver controvérsias, a ABP e outras associações sempre vêm à público defender a existência e a pertinência do diagnóstico de TDAH. Ou seja, se houvesse realmente um consenso, não precisariam fazer isso. Na própria carta, eles tentam estabelecer um paralelo do TDAH com a diabetes, só que uma importante diferença entre estes diagnósticos, dentre tantas, é que nenhuma associação precisa vir à público de tempos em tempos defender a existência do diabetes. Talvez no passado isso tenha sido necessário, mas não hoje. No caso do TDAH, não há qualquer consenso, nem dentro nem fora da psiquiatria.
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