Em defesa da família tentacular
Psicologia

Em defesa da família tentacular


No artigo chamado "Em defesa da família tentacular", Maria Rita Kehl questiona se a “degradação social” em que vivemos (delinquência juvenil, violência, drogadições, desorientação dos jovens e etc) é responsabilidade ou não da “dissolução da família” família nuclear “normal”: monogâmica, patriarcal e endogamica.

A autora faz uma análise histórica de como e porque a tendência da sociedade tem sido se afastar cada vez mais deste padrão familiar que as classes medias brasileiras adotaram como ideal...

Tudo começou com o ingresso das mulheres no mercado de trabalho, e como consequência disso, “a emancipação financeira daquelas que durante tantas décadas foram tão dependentes dos chefes da família”. A partir daí, o número de separações e divórcios aumentou consideravelmente, assim como aumentou também a idade em que as mulheres vêm decidindo se casar.

Além da liberdade financeira das moças, que permite que possam experimentar e se arriscar mais nas escolhas amorosas, existe também o fator da liberdade sexual conquistada pelas mulheres. “Com a descoberta e democratização das técnicas anticoncepcionais, o tabu que sustentava o casamento monogâmico deixou de fazer sentido”, pois desvinculou a sexualidade feminina da procriação. Por causa disso, cada vez mais existem mulheres sozinhas com filhos para criar, a gravidez não programada entre adolescentes se tornou algo comum, casar, ter filhos e se separar se tornou algo muito mais “rotineiro”.

Amor de todas as formas;
Sem padrão.
Segundo Kehl, “a liberdade de escolha que esta mudança moral proporciona, a possibilidade de se tentar corrigir um sem-número de vezes o próprio destino, cobram seu preço em desamparo e mal-estar. O desamparo se faz sentir porque a família deixou de ser uma sólida instituição para se transformar num agrupamento circunstancial e precário, regido pela lei menos confiável entre os humanos: a lei dos afetos e dos impulsos sexuais”.

Maria Rita chama de “família tentacular” as novas configurações irregulares de famílias, que são misturadas, improvisadas e mantidas com afeto, esperança e desilusões, na medida do possível, que são “marcadas de sonhos frustrados, projetos abandonados e retomados, na construção de um futuro o mais parecido possível com os ideais da família do passado”. Ideal que se não for superado, continuará causando sofrimento e mal estar.

Quando se fala em “família normal”, vale questionar se esse “normal” é o mesmo que saudável, já que como aponta Kehl, esse “mal estar” nesse cenário de extrema mobilidade das configurações familiares vem justamente da cobrança que nos fazemos ao comparar nossas famílias “improvisadas” com a família “ideal” burguesa do século XX.

Que família “normal” e “ideal” era essa? Por que durou menos de dois séculos como célula-mãe da sociedade? O que estamos lamentando que tenha se perdido ou transformado? Será que a sociedade seria mais saudável se ainda seguisse o ideal insustentável da “família do comercial de margarina”? “Tendemos a nos esquecer que família era aquela, e a que custo – psíquico, sexual, emocional -  ela se manteve.”, diz Kehl. Ela nos lembra também que quando Freud começou a investigar a origem das neuroses foi no contexto de família nuclear burguesa que ele ouviu todos os relatos de sofrimentos emergindo.

Será que realmente essas mudanças nas composições familiares são as responsáveis pela crise ética contemporânea? Afinal, qual é a relação que existe entre a “dissolução familiar patriarcal” e a correspondente “dissolução dos costumes morais”? Segundo Kehl, essa relação pode se dar por duas vias. Do público para o privado – onde a ética do consumo é um dos grandes responsáveis pela desmoralização e transmissão familiar dos valores. E a segunda via, que vai do privado ao publico – diz respeito as dificuldades dos pais e mães (ou seja lá quem for que exerça tais funções) em sustentar suas posições de autoridades responsáveis perante a crianças.

Isso se dá talvez pelo peso da divida para com a família idealizada que os pais sentem, fazendo com que se sintam em divida também com os filhos, ficando, assim, incapazes de lhes impor os limites necessários para a educação.  

Sabemos que a família tem a função de formar o individuo – preparar a criança para o convívio social e suas responsabilidades. Como aponta Maria Rita, a família mudou, mudaram os papéis familiares, mas não foi substituída por outra forma de organização molecular. Todos os papeis familiares são substituíveis. O que não é insubstituível é o olhar de interesse e a presença do adulto sobre a criança, sendo amoroso, porém também responsável, impondo limites e educando, com a intenção de que a criança seja feliz na medida do possível – mas não a qualquer preço. Isso é o necessário para que a família contemporânea, em todas as suas variações, possa transmitir parâmetros éticos para os mais novos.

No fim das contas, toda essa crise ética que vem ocorrendo, não é culpa em si das famílias tentaculares, pois, como Kehl nos mostra historicamente, as familiares patriarcais também causavam mal estar, sofrimento, histerias e obsessões. Porém, esse amor com responsabilidade, é necessário, mas não é suficiente se a esfera do público para o privado não for também revalorizado, se o setor publico também não voltar a se responsabilizar pelo seu papel diante da crise ética e moral contemporânea que estamos enfrentando. A família sozinha não é capaz de dar conta dessa crise, se não existir, também, essa restauração do espaço publico, que vem sido regida de corrupção.

Isabela França
- Leia o texto de Maria Rita Kehl original, na íntegra: aqui.



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