Psicologia
TDAH existe?
No último dia 28 de Novembro, o neurologista Eduardo Mutarelli participou do Programa Mais Você, da TV Globo, com o objetivo de debater o diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Em determinado ponto do programa, Mutarelli deu as seguintes declarações (link):
“Todo mundo tem algum destes sintomas e a confusão é que estes sintomas são frequentes, mas eles têm que estar presentes de maneira a prejudicar. Tem autores que acham que esta doença nem existe, mas vamos admitir que existisse. Os autores alertam que têm diagnósticos demais e que as pessoas estão tomando remédios além da contaâ€, alertou. Em relação aos exames, o médico opinou: "É complexo a ponto de você ter que analisar o ambiente em que a criança está, em que contexto ela está. Quem tem déficit de atenção verdadeiro começa logo cedo, antes dos sete anos. Eles querem mudar agora para antes dos 12 anosâ€. Mutarelli disse ainda que “Os sintomas de que a gente deveria prestar atenção são os que estejam interferindo pesadamente, não particularmente, não é que a criança não vá bem em determinada matéria, mas sim em todo o contexto. As aulas hoje são desinteressantes e fora do contextoâ€, analisou. “Eu acho que o dia a dia de hoje é tanta correria, que é mais fácil você fazer o diagnóstico do déficit de atenção, porque você culpa um fator externo e não se envolve maisâ€, avaliou o especialista, enfatizando que raramente o remédio ajudará o paciente. “Com tanta falta de tempo, pais trabalhando, a criança até poderia se recuperar se fizesse o dever de casa com alguém. É mais fácil você prescrever um medicamento, chapar a criançaâ€, finalizou.
A declaração de Mutarelli, especialmente o trecho "tem autores que acham que esta doença nem existe" gerou uma reação da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), que elaborou uma resposta pública à s declarações do neurologista. O conteúdo deste documento (link) pode ser resumido na idéia de que o TDAH tem uma existência fÃsica, a-temporal e universal. Os cinco principais argumentos a favor desta tese apresentados no documento são: 1) O que hoje chamamos de TDAH é descrito por médicos desde o século XVIII; 2) Os sintomas que compõem o TDAH são observados em diferentes culturas; 3) O TDAH é reconhecido pela OMS como transtorno mental e está listado na Classificação Internacional de Doenças (CID); 4) Mais de duzentos artigos cientÃficos já foram publicados demonstrando alterações no funcionamento cerebral de portadores de TDAH; 5) Apesar das contraindicações, os medicamentos são extremamente benéficos para aqueles que realmente precisam. Apresentados os argumentos básicos, a SBP conclui:
"Diante do exposto, façamos uma reflexão. Se fosse uma doença 'inventada' ou 'mera consequência da vida moderna', seria possÃvel o TDAH atravessar mais de um século com a descrição dos mesmos sintomas? Se o TDAH fosse apenas 'um jeito diferente de ser' e não um transtorno mental, por que os portadores, segundo pesquisas cientÃficas, têm maior taxa de abandono escolar, reprovação, desemprego, divórcio e acidentes automobilÃsticos? Por que eles têm maior incidência de depressão, ansiedade e dependência de drogas? Se fosse tão somente um comportamento secundário ao modo como as crianças são educadas, ou ao seu meio sociocultural, como é possÃvel que a descrição seja praticamente a mesma em regiões tão diferentes? O fato inquestionável é que o TDAH é um dos transtornos mais bem estudados da medicina e com mais evidências cientÃficas que a maioria dos demais transtornos mentais."
Analisemos brevemente os argumentos apresentados pela SBP. Com relação ao primeiro, sabe-se que a homossexualidade e a masturbação foram, por muito tempo, consideradas patológicas pela medicina. O fato de certos comportamentos estarem descritos como patológicos desde o século XVII não confere "verdade" ao TDAH. Na minha opinião, todos os chamados "transtornos mentais" são invenções, possÃveis somente em determinados contextos históricos e sociais. Isto não significa dizer que não existam pessoas agitadas e hiperativas, mas que considerar estes comportamentos como patologias passÃveis de tratamento medicamentoso, depende mais do contexto que de qualquer comportamento da pessoa. Penso não haver nada nos comportamentos em si que determinem a diferença entre o normal e o patológico. Qualquer diagnóstico depende essencialmente de um julgamento e este "juiz" está inserido em uma sociedade que estabelece os critérios para seu julgamento, condicionando seu olhar.
Sobre o segundo argumento, questiono: será mesmo que os sintomas do TDAH estão presentes em diversas culturas ou certos comportamentos de outras culturas são interpretados sob esta ótica? Já o terceiro argumento, na minha opinião, é o mais estúpido, afinal até a homossexualidade já figurou no CID e no DSM, além do fato de o número e a variedade dos transtornos mudar imensamente de uma edição para outra. Ou seja, estar incluido no CID ou ser reconhecido pela OMS não significa nada. Esse é, simplesmente, um argumento de autoridade: "Se a OMS disse, então deve ser verdade".
Com relação ao quarto argumento, cabe considerar que ao nos alimentarmos também produzimos alterações cerebrais. Ao ficarmos tristes também, da mesma forma que ao caminharmos pela rua. Agora, o fato de haver correlação entre certos comportamentos e certas alterações cerebrais não diz nada sobre se o comportamento é patológico ou não. As imagens do cérebro não falam por si, precisam ser interpretadas. Outro erro também muito comum tem sido confundir correlação com etiologia ou causalidade: de fato nossa tristeza é acompanhada por uma série de alterações cerebrais, dentre elas uma diminuição no nÃvel de certos neurotransmissores. Mas isto não significa dizer que é a baixa da serotonina que causa a depressão. Significa apenas que uma coisa acompanha a outra. Pode ser até que ocorra o contrário, que a depressão ou a tristeza cause a baixa de serotonina. Há autores que argumentam que o cérebro mais reage ao que fazemos ou pensamos do que efetivamente age. Ou seja, estamos no controle, não ele.
Finalmente, sobre o quinto argumento, acredito que medicamentos podem ser, realmente, úteis para algumas pessoas, mas será que não está havendo um exagero na prescrição hoje em dia? A ABP nem toca na questão da medicalização, o que me leva a pensar que quem cala consente. Neste sentido, não posso discordar do Manifesto de Lançamento do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade (leia aqui), quando afirma que
"Uma vez classificadas como 'doentes', as pessoas tornam-se 'pacientes' e consequentemente 'consumidoras' de tratamentos, terapias e medicamentos, que transformam o seu próprio corpo no alvo dos problemas que, na lógica medicalizante, deverão ser sanados individualmente. Muitas vezes, famÃlias, profissionais, autoridades, governantes e formuladores de polÃticas eximem-se de sua responsabilidade quanto à s questões sociais: as pessoas é que têm 'problemas', são 'disfuncionais', 'não se adaptam', são 'doentes' e são, até mesmo, judicializadas (...) A medicalização tem assim cumprido o papel de controlar e submeter pessoas, abafando questionamentos e desconfortos; cumpre, inclusive, o papel ainda mais perverso de ocultar violências fÃsicas e psicológicas, transformando essas pessoas em 'portadores de distúrbios de comportamento e de aprendizagem'".
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