Modelo Social de Deficiência
Psicologia

Modelo Social de Deficiência


Este é um resumo do 2º capítulo (Modelo social da deficiência) do livro "O que é deficiência?", da Coleção Primeiros Passos. Paul Hunt, sociólogo e deficiente físico, foi um dos precursores do modelo social da deficiência. Seus primeiros escritos buscavam a compreensão do fenômeno sociológico da deficiência partindo do conceito de “estigma” de Erving Goffman, que dizia que “os corpos são espaços demarcados por sinais que antecipam papéis a serem exercidos pelos indivíduos”. Valores simbólicos estariam associados aos sinais corporais, sendo a deficiência um dos atributos que mais interessavam os teóricos do estigma.

A deficiência era entendida como uma lesão que impõe restrições à participação social de uma pessoa. No texto, esse conceito é ampliado, passando a compreender não apenas o corpo com lesão, mas também a estrutura social que oprime a pessoa deficiente. O primeiro desafio foi o de desconstruir e desafiar a hegemonia biomédica dominante, aproximando os estudos sobre deficiência de outros saberes já consolidados, como os estudos culturais e feministas. Resultando disso, abriu-se um debate sobre como descrever a deficiência em termos políticos, e não mais apenas de diagnóstico. 

Para os primeiros estudiosos, a linguagem referente ao tema estava carregada de violência, estigma e discriminação. Um dos poucos consensos no campo foi de que termos como “aleijado”, “manco”, “retardado”, “pessoa especial”, dentre outros, deveriam ser abandonados, abrindo espaço aos termos/categoria de “pessoa deficiente”, “pessoa com deficiência” e “deficiente”. Há um debate sobre cada uma dessas expressões. A opção por “pessoa deficiente” ou simplesmente “deficiente” demonstra a deficiência como uma característica individual e como parte constitutiva da identidade das pessoas, não apenas como um mero detalhe.

Esse é campo de estudo é um campo pouco explorado, com poucos cientistas sociais dedicando-se ao tema, pela deficiência ainda ser considerada uma tragédia pessoal, e não uma questão de justiça social, além do fato de a deficiência ainda não ter se libertado totalmente da autoridade biomédica. Um dos escritos de maior impacto de Hunt foi uma carta que remetida ao jornal inglês The Guardian, em 1972, em que chamava atenção ao fato de pessoas deficientes estarem sendo mantidas isoladas em instituições sem as menores condições, sujeitas a autoritarismo e a cruéis regimes. Propôs, então, a formação de um grupo de pessoas que levasse ao parlamento a ideia dessas pessoas que viviam nessas instituições. Ele não imaginava que sua carta teria tanta repercussão e impacto: várias pessoas responderam, formando um grupo de deficientes, que em quatro anos organizou-se como a primeira organização política desse tipo: a Liga dos Lesados Físicos Contra a Segregação (Upias). 

Michael Oliver foi um dos deficientes físicos que respondeu a carta de Hunt. Sociólogo, é considerado um dos precursores e principais idealizadores do modelo social da deficiência. Outros sociólogos deficientes que contribuíram e fizeram parte do grupo inicial de formação da Upias foram Paul Abberley e Vic Finkelstein.

Já existiam instituições para cegos, surdos e pessoas com restrições cognitivas há mais de dois séculos, além de instituições onde pessoas com diferentes lesões eram internadas e abandonadas. Porém, a Upias foi a primeira organização política sobre deficiência a ser formada e gerenciada por deficientes. As outras que existiam antes eram instituições para deficientes onde se confinavam pessoas com diferentes lesões físicas ou mentais, cuidando delas e oferecendo educação, em geral com o objetivo de afastar as pessoas com lesões do convívio social ou de “normalizá-las” para devolvê-las à família e a sociedade.

“A originalidade da Upias não foi somente ser uma entidade de e para deficientes, mas também ter articulado uma resistência política e intelectual ao modelo médico de compreensão da deficiência”. A Upias constituiu-se, primeiramente, como uma rede política em que o principal objetivo era questionar a compreensão tradicional e biomédica da deficiência, onde via-se a deficiência como natural da lesão de um corpo, onde a pessoa deficiente deve ser objeto de cuidados biomédicos. A proposta foi de que a deficiência não deveria ser entendida como uma “tragédia pessoal”, mas sim como uma questão social. 

A Upias trazia uma estratégia provocativa, pois tirava do sujeito a responsabilidade pela opressão experimentada pelos deficientes e a transferia para a incapacidade social em prever e lidar com a diversidade. Provocaram, então, uma reviravolta no debate biomédico, ao redefinir lesão e deficiência em termos sociológicos, e não mais estritamente biomédicos. Os deficientes viviam encarcerados, ao invés de internados para tratamento. Ou seja, a experiência de “deficiência” não era resultado de suas lesões, mas sim do ambiente social hostil à essa diversidade física. O objetivo principal era redefinir a deficiência em termos de exclusão social, passando a ser entendida como uma forma particular de opressão social, como as sofridas por outros grupos minoritários que também carregam estigmas, como mulheres, negros, e outros. 

O marco teórico dos sociólogos deficientes criadores da Upias foi o ‘materialismo histórico’, que os conduziu a formulação da tese política de que a discriminação pela deficiência era uma forma de opressão social, definindo essa opressão sofrida pelos deficientes como uma “situação coletiva de discriminação institucionalizada”. “Seria um corpo com lesão que limitaria a participação social ou seriam os contextos pouco sensíveis a diversidade o que segregaria o deficiente?” O desafio estava lançado: avaliar se a experiência opressiva e exclusiva decorria das limitações físicas (como a biomedicina defendia) ou se seria resultado de organizações sociais e políticas insensíveis a diversidade corporal. 

A Upias então, propôs, a definição de deficiência como “desvantagem ou restrição de atividade provocada pela organização social contemporânea, que pouco ou nada considera aqueles que possuem lesões físicas e os exclui das principais atividades da vida social”. A lesão seria um dado corporal isento de valor, e a deficiência o resultado da interação desse corpo com lesão em uma sociedade discriminatória. Retirando o sentido pejorativo das lesões, a Upias aproximou os deficientes das outras minorias sociais. 

Dentre os objetivos da Upias estavam: 1) diferenciar natureza de sociedade, visto que a opressão não era resultado da lesão, mas sim da sociedade excludente, tendo deficiência como discriminação social, denunciando as construções sociológicas que descreviam a lesão como desvantagem natural. 2) assumir a deficiência como questão sociológica (deficiência não mais como desigualdade natural, mas como opressão exercida sobre o corpo deficiente). Dessa forma, a deficiência não deveria restringir-se aos saberes biomédicos, mas abranger principalmente ações políticas e de intervenção do Estado. Esses dois objetivos ampliaram o caminho para um novo olhar sobre a deficiência. As alternativas para acabar com a segregação não viriam dos recursos biomédicos, mas sim das ações políticas capazes de denunciar a ideologia opressivas aos deficientes. Ao afirmar que essa resposta estava na política e na sociologia, nenhum dos teóricos negou ou recusou os benefícios e avanços biomédicos para o tratamento do corpo com lesões; porém, era preciso ir além da medicalização da lesão e atingir as políticas públicas para deficientes. Assim, lesão e deficiência foram separados radicalmente, ficando a lesão como objeto das ações biomédicas no corpo, e a deficiência como questão da ordem dos direitos, justiça social e políticas públicas.

Como conceito político, deficiência passou a expressar a desvantagem social sofrida pelas pessoas com diferentes lesões. O objetivo não era transformar o vocabulário por questões estéticas, mas politiza-lo retirando expressões que não estivessem de acordo com a proposta do modelo social. A ideia era de mostrar que, independente das lesões, havia um fator que unia todos os deficientes: a experiência da opressão. Assim, deficiência é entendida como experiência de opressão, compartilhada por pessoas de diferentes lesões.

Era preciso também responder a questão sobre “quem se beneficiaria com a segregação dos deficientes?” e a resposta foi “o capitalismo”. Assim, segundo Harlan Hann, “a deficiência é aquilo que a política diz que seja”. O modelo médico (ainda hoje hegemônico para as políticas voltadas para os deficientes) afirmava que a experiência de segregação, desemprego, baixa escolaridade, dentre outras variações da opressão, era causada pela inabilidade do deficiente para o trabalho produtivo. Se para eles, o problema estava na lesão, para o modelo social, a deficiencia era o resultado desse ordenamento político e econômico capitalista, que pressupunha um ideal de sujeito produtivo. Para o modelo médico, lesão levava a deficiência; para o modelo social, sistemas sociais opressivos levavam pessoas com lesões a experimentarem a deficiência. Os dois modelos concordavam em um ponto: a lesão deveria receber os cuidados biomédicos. 

Abberley, um dos principais teóricos da tese da opressão pela deficiência, tinha um duplo objetivo: diferenciar opressão de exploração, e apresentar a lesão como uma consequência previsível do capitalismo. Ele afirmava que a relação de causalidade deveria ser capitalismo-lesão-deficiência, e não lesão-deficiência-segregação. Para embasar isso, utilizou o argumento biomédico de que grande parte dos casos de artrite era motivado por desgaste no trabalho. Propões então, um argumento bipartido, entendido como fundamento do modelo social: primeiramente, não se deve explicar o fenômeno da deficiência pela esfera natural ou individual, mas pelo contexto socioeconômico no qual as pessoas com lesão vivem. Segundo, é preciso estender os conceitos de lesão e deficiência a outros grupos sociais, como os idosos.

Dessa forma, Abberley mostrava que a lesão não era aquela “tragédia pessoal”, mas resultado da organização social do trabalho, ampliando a compreensão do significado da lesão de forma a torna-la um fato inclusive previsível na vida social. “A ideia não era abandonar o acaso como agente provocador das lesões, mas mostrar que aquilo que mais causava lesões era exatamente o sistema ideológico que oprimia os deficientes, isto é, o capitalismo”. 

Ainda assim, sempre houve e ainda há uma crença altamente difundida de que a lesão representa “a desvantagem real e natural”, ou seja, a desvantagem provocada pela lesão é universal, absoluta e independente dos arranjos sociais. Crença essa que dificultava que houvesse um consenso político de que a biologia não determina a desvantagem social no campo da deficiência, diferenciando a opressão sofrida pelos deficientes da opressão sofrida por outros grupos minoritários, como as mulheres e os negros, onde nas discussões sobre desigualdade de gênero, há um consenso de que a biologia não determina a desvantagem social, como no campo da deficiência.

Abberley propôs, então, uma teoria social da lesão, cujo fundamento era a estrutura do capitalismo, em especial o ordenamento social em torno do trabalho produtivo. O objetivo era assumir que o corpo era um espaço de expressão da desigualdade que precisava ser colocado no centro dos debates sobre justiça social para os deficientes. Para essa teoria, o exemplo da artrite era paradigmático, pois as pessoas eram produtivas, sem lesões, e após anos de sujeição a trabalho mecânico, adquiriram lesões e experimentaram a deficiência. Abberley também incluiu na categoria de deficientes os idosos, o que significou uma desconstrução da simbologia hegemônica do deficiente. A aproximação da deficiência ao envelhecimento foi um argumento estratégico de desconstrução simbólica que pressupunha a representação de outras formas de deficiência.

A partir disso, Abberley teve o argumento de que a lesão não é mais só algo inesperado, mas também recorrente do ciclo da vida humana. O objetivo era político: ampliando-se o grupo a ser representado, retirava-se a deficiência da esfera do inesperado e reconheciam-se as demandas dos deficientes como demandas de justiça social.

Como resultado, a teoria da deficiência como opressão é construída em cinco argumentos: 1) a ênfase nas origens sociais das lesões; 2) o reconhecimento das diversas desvantagens provocadas nas pessoas com lesões, bem como a resistência a tais desvantagens; 3) a origem social da lesão e as desvantagens sofridas pelos deficientes são produtos históricos, não resultados da natureza; 4) reconhecimento do valor da vida dos deficientes, e a crítica à produção social das lesões; 5) adoção de uma perspectiva política capaz de garantir justiça aos deficientes. 

“Essa teoria de Abberley tanto respondia à pergunta inicial que motivou a formação da Upias – por que os deficientes são excluídos da sociedade? – quanto lançava luzes sobre a maneira de romper esse processo de exclusão”.

Referência: DINIZ, Debora. O que é deficiência? São Paulo: Brasiliense, 2007. 96 p.



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