Para um negro que vivia no Brasil na época em que vigorou a escravidão, era difÃcil estabelecer laços familiares, já que seu destino dependia da vontade do proprietário. Apesar das condições adversas, muitas famÃlias foram formadas, e elas representaram mais uma forma de resistência dos negros à s condições de vida à s quais eram submetidos.
Para discutir a temática da famÃlia negra, foram convidadas três professoras que estudam o assunto: Isabel Cristina dos Reis, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Cristiane Pinheiro Jacinto, do Instituto Federal do Maranhão (IFMA) e Solange Pereira da Rocha, da Universidade Federal da ParaÃba (UFPB). As pesquisas das três são baseadas em documentos como registros de batismo, testamentos e inventários dos proprietários de escravos e até processos criminais da época .
As três destacaram as muitas dificuldades para que os negros estabelecessem laços formais, destacando que a maior parte das relações eram consensuais. "Eles não eram donos de suas vidas. Eles tinham um senhor que a qualquer momento podia vendê-los, enviá-los para outra provÃncia, mandar para uma fazenda no interior", afirmou Cristiane Jacinto.
"Havia um número pequeno de negros casados. Mas, entre eles existiam vários tipos de relação: escravos casados com escravos do mesmo proprietário, escravos casados com escravos de diferentes proprietários, escravos casados com livres, escravos casados com libertos", explicou Cristiane. A distinção entre livres e libertos é que os libertos eram negros que antes eram escravos e conseguiram a liberdade, enquanto os livres eram normalmente os negros que, por chegarem ao Brasil através do tráfico ilegal, ficavam sob a custódia do governo.
"Imagine uma mulher escravizada casada com um homem livre? Se a esposa fosse vendida, o que ele faria? Há o registro de uma escrava que era vendida sucessivas vezes e em todas as vezes o marido liberto ia junto", contou a pesquisadora. Ela acrescentou que, no Maranhão, o tráfico interprovincial de escravos foi intensificado a partir de 1846, o que tornou ainda mais difÃcil a manutenção dos laços familiares. "Quando os dois estavam na mesma cidade, ainda era possÃvel manter o vÃnculo, mas, quando um ficava no Maranhão e o outro era vendido para o Rio de Janeiro, a situação ficava muito complexa".
Solange Rocha ressaltou que era muito comum a separação das famÃlias na sociedade escravista, mesmo após uma lei de 1869 que proibia a separação. "A gente tem o relato de uma mulher na ParaÃba que foi separada de seus filhos e enlouqueceu. Ela não conseguiu superar as perdas", contou. Segundo a pesquisadora, a separação entre a mulher e o companheiro causava um tipo comum de relação familiar durante o perÃodo da escravidão. "Havia muitas famÃlias de mulheres, as chamadas famÃlias monoparentais. Através de documentos, podemos encontrar essas famÃlias com até três gerações", destacou.
De acordo com Isabel dos Reis, era comum que, no caso de união entre escravos e libertos, um dos companheiros buscasse a alforria do outro. "Muitas pessoas mantinham uma relação estável, duradoura, e havia o comprometimento de o homem comprar a alforria de sua mulher ou de a mulher comprar a alforria do marido. Com isso, a gente percebe a resistência, a luta para preservar esses laços", afirmou.