Neste momento, o filme começa a expor algumas estratégias reais da indústria farmacêutica para influenciar os médicos a prescreverem seus produtos. São mostrados os almoços pagos pelos representantes da Big Pharma (que motivaram, nos Estados Unidos, a campanha No free lunch - "Não existe almoço grátis"), a distribuição de viagens, brindes e amostras grátis (que geraram no Brasil a campanha "Alerta: Amostra nunca é grátis"), os eventos e artigos "cientÃficos" patrocinados pela indústria, o recrutamento de psiquiatras como "consultores" (muito bem pagos, obviamente) em pesquisas cujo principal objetivo é, na verdade, habituar o paciente e o psiquiatra com determinada medicação (normalmente uma "nova" medicação, mas que costuma ser apenas "mais do mesmo", ou seja, praticamente a mesma fórmula de um medicamento antigo com outro nome, de forma a parecer algo "inovador"), etc. Além disso o filme aponta para o impacto das propagandas de medicações psicotrópicas diretamente para o consumidor - o que é proibido na maior parte do mundo (inclusive no Brasil), com exceção somente dos Estados Unidos e da Nova Zelândia. Em uma cena ilustrativa, a psiquiatra Victoria comenta sobre Emily para Jonathan: "Talvez ela seja candidata a um desses remédios novos. Às vezes o recurso mais novo dá confiança. Eles veem os comerciais na televisão e acreditam".
Esta relação entre a medicina e indústria farmacêutica é mais próxima do que muitos imaginam. Segundo pesquisa realizada em 2010 pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP) com 600 médicos de diversas especialidades, 93% deles afirmaram já ter recebido produtos, benefÃcios ou pagamentos considerados de pequeno valor (até R$500,00) da indústria farmacêutica ou de equipamentos, 80% já receberam visitas de representantes da indústria (e isto ocorre desde a graduação), 34% já ganharam almoços ou jantares, 74% amostras grátis de medicamentos, isto para não falar dos materiais informativos (88%), revistas "cientÃficas" patrocinadas pela indústria (61%), objetos de pequeno valor para o consultório (58%) e ingressos para eventos culturais ou de lazer (15%). E mais: 77% dos pesquisados disseram conhecer médicos que já receberam produtos, benefÃcios e pagamentos de maior valor (mais de R$500,00). No entanto, somente 37% deles admitiram ter recebido. É aquela velha história: "vendidos (ou racistas ou homofóbicos ou bairristas) são os outros, não eu!" De qualquer forma, esta proximidade da medicina com a indústria farmacêutica é avaliada pelos médicos predominantemente (62%) como algo positivo. Neste sentido, 73% acreditam que sem o patrocÃnio da indústria, a organização de congressos se inviabilizaria e 19% são favoráveis até mesmo a que a indústria opine sobre a programação de congressos e simpósios médicos. Mas felizmente existe uma minoria significativa que não vê com bons olhos tal aproximação. De acordo com a pesquisa, 32% acreditam que o relacionamento dos médicos com a indústria está totalmente fora de controle e 35% fazem crÃticas à indústria, principalmente por causa da relação comercial, dos interesses financeiros e influências na prescrição. Nos últimos anos algumas tentativas de disciplinar a relação dos médicos com a indústria tem sido implantadas pelo Conselho Federal de Medicina , mas o problema permanece. E é realmente um problema pois, por mais que alguns médicos afirmem não ser influenciados pela indústria, eles o são sem se darem conta - assim como nós somos influenciados pela publicidade de uma forma geral. Se pensarmos bem, a publicidade é para a indústria farmacêutica uma enorme fonte de gastos - maior até do que os gastos com pesquisa. Desta forma, se o marketing direto ou indireto não trouxesse nenhum retorno financeiro, será que eles continuariam investindo? Certamente não. Se continuam se aproximando dos médicos é porque a tática funciona. E como! A Big Pharma está cada vez mais big!
Relacionado à isto, é interessante perceber que no universo do filme - que talvez não seja assim tão diferente do nosso - medicar-se é algo comum, cotidiano, banal. Praticamente todos que aparecem na tela se utilizam de alguma medicação ou substância psicoativa, desde Emily até a mulher do psiquiatra. A cena em que esta recebe uma medicação do marido é bastante ilustrativa: logo antes de participar de uma entrevista de emprego, Jonathas lhe dá um tranquilizante e ela, então, questiona: "é errado eu estar fazendo isso?". A resposta do psiquiatra é esclarecedora: "Todo mundo toma. Advogados, músicos, pessoas que vão para entrevistas de emprego importantes. [A medicação] não a torna nada que você não é, apenas facilita que você seja quem você é". O próprio psiquiatra, em determinado momento, aparece tomando uma bebida energética, que o ajuda a suportar os extenuantes plantões - e é quando ele diz a frase que escolhi para o tÃtulo deste texto: "Vivendo melhor através da quÃmica!". Neste sentido, eu não teria como discordar das idéias do antropólogo da ciência Joseph Dumit em seu último livro Drugs for life: How Pharmaceutical companies define our health (Drogas para a vida: como as companhias farmacêuticas definem nossa saúde). Segundo ele, atualmente, "as medicações se tornaram parte integrante da vida cotidiana na América. Elas ajudam aqueles que estão de dieta a terem um jantar de Natal [através de medicações que controlam as taxas de colesterol]; elas ajudam a suprir as escolas com crianças atentas; elas são parte de nossa identidade assim como de nossas vidas".
Neste livro, Dumit estabelece uma interessante classificação dos "modos biomédicos de viver", ou seja, das formas com que as pessoas se relacionam com as medicações e com os riscos da vida. O primeiro tipo é o "paciente expert", que engloba pessoas sedentas por informações sobre a própria saúde. Os pacientes experts são, por assim dizer, experts em serem pacientes. Sabem todas as suas taxas de glicose e colesterol e tentam se manter sempre atualizados com relação à elas. E para atingirem a tão desejada saúde adotam uma abordagem um tanto hipocondrÃaca, que Dumit chama de "abordagem da poli-pÃlula": com o objetivo de serem saudáveis, tomam uma série de medicações. Assim, o lema dos "pacientes experts" é: "se você pode tomar remédios que te ajudam, então você deve tomá-los". O segundo tipo definido por Dumit são os "sujeitos assustados". Estas pessoas não tanto procuram a saúde quanto evitam doenças e riscos, mas nunca estão certos se de fato conseguiram o que pretendem. Tais sujeitos vivem permanentemente tensos e inseguros - e mesmo assustados - diante das incertezas e controvérsias da área da saúde. "Os médicos dizem que comer salmão faz bem para o coração, mas li no jornal que os salmões estão contaminados com dioxina, o que aumenta o risco de câncer. O que eu faço? Como ou não como?". É esse tipo de crise em que vive permanentemente os sujeitos medrosos. "Como chocolate porque faz bem para o coração ou não como porque aumenta o colesterol?" A alimentação, neste caso, é tratada como remédio, num processo chamado por Dumit de medicalização da comida. Segundo o autor, a oposição entre o que é prazeroso e o que é saudável é uma caracterÃstica essencial dos sujeitos medrosos. Finalmente, o último tipo definido por Dumit são as pessoas que "vivem melhor através da quÃmica" (expressão exata à utilizada pelo psiquiatra do filme). Estas pessoas estão bem resolvidas com o fato de que a vida pode (e portanto deve) ser regulada quimicamente. É preciso tomar um remédio para dormir e outro para acordar? Tudo bem! É preciso tomar um remédio para acalmar e outro para agitar? Tudo bem! Posso tomar um remédio que diminui o colesterol de forma a poder comer aquela feijoada no sábado? Que ótimo! Não há nessas pessoas qualquer culpa ou receio com relação à s medicações. Elas simplesmente as incorporaram em suas vidas e em suas identidades. É exatamente este universo de pessoas que é retratado pelo filme.
Mas voltando à história, Emily passa então a tomar o antidepressivo Ablixa. Inicialmente parece que o remédio faz efeito e ela se sente muito melhor consigo mesma e com seu casamento. Ao mesmo tempo, ela começa a sentir os tais efeitos colaterais indicados pelo tÃtulo original do filme, com destaque para um: Emily torna-se sonâmbula. E é em um desses episódios de sonambulismo que Emily mata seu marido à facadas - em uma cena assustadora. A partir de então, o foco do filme muda para o psiquiatra de Emily em sua investigação do que de fato aconteceu. Inicialmente o filme traz, indiretamente, uma discussão que considero interessantÃssima: quem cometeu o crime? Ou melhor: quem é o culpado? Se Emily estava dormindo, poder-se-ia argumentar que não havia propriamente um "eu consciente" que pegou uma faca e enfiou em Martin - em termos legais ela poderia, neste caso, ser considerada inimputável, afinal, como disse o psiquiatra no filme "para haver intenção é necessário consciência". Então quem matou? Em determinado momento a culpa recai, de certa forma, no cérebro de Emily, numa justificativa do tipo "não fui eu, foi meu cérebro" - que vem sendo cada vez mais aceita pela justiça. A ideia passa a ser, então, que o cérebro de Emily, sob o efeito do antidepressivo, fez com que ela cometesse o crime. E como cérebros não podem ser condenados e presos (sem levarem juntos seus "donos" - ou será que somos os nossos cérebros?), a responsabilidade recai, finalmente (e para alivio do laboratório farmacêutico), no psiquiatra que receitou o Ablixa para Emily. Esta, por sua vez, passa a ser vista como uma vÃtima do tratamento médico empreendido por Jonathas. Com esta acusação, a vida do psiquiatra vira de cabeça para baixo e ele passa a tentar provar sua inocência buscando entender o que de fato houve naquela fatÃdica noite.
O que acontece em seguida é tão cheio de revelações e reviravoltas que eu cheguei a me perder. Mas o essencial de tudo isso - e espero que se você chegou até aqui, tenha de fato assistido ao filme - é que, na verdade, Emily fingiu o tempo todo estar deprimida (até chegou a tomar o Ablixa, mas ele não fez efeito algum) e matou seu marido conscientemente. Os motivos ficaram um pouco confusos para mim, mas se relacionam com um caso que Emily teve com sua ex-psiquiatra Victoria e à um esquema de fraude do seguro de Martin que ambas se envolveram. Ou seja, toda a interessante discussão sobre o uso e os efeitos colaterais das medicações se perde num final inesperado porém simplista, que revela que a protagonista não era nada mais nada menos do que uma psicopata, que fez tudo o que fez racionalmente em função de interesses escusos. Como forma de punÃ-la, Jonathas a diagnostica falsa e intencionalmente como sendo portadora de Transtorno esquizoafetivo e ela termina o filme internada em uma instituição psiquiátrica. Uma reflexão que podemos tirar das revelações deste último ato de "Terapia de risco" é o quanto é fácil a um psiquiatra (ou a qualquer outro profissional de saúde mental) ser enganado por algum paciente mal intencionado - como Jonathas o foi por Emily. Por lidarmos com questões altamente subjetivas, estamos sempre sujeitos ao erro, ao engano, à mentira - como comprovou o experimento clássico do psicólogo David Rosenham na década de 70. Não temos (e será que um dia teremos ou queremos ter?) um exame de sangue que ateste que a pessoa está deprimida ou ansiosa ou angustiada. Como afirma a psiquiatra Victoria em determinada passagem do filme, "os cardiologistas podem ver um ataque cardÃaco que está a caminho através de exames. Está no sangue. Mas quem pode ver a mentira, ou o passado, ou a tristeza?". Encontrar marcadores biológicos e desenvolver exames objetivos para problemas subjetivos é, atualmente, o sonho dourado da psiquiatria moderna. E não é por outro motivo que o Instituto de Saúde Mental dos EUA (NIMH) declarou independência do recém-lançado DSM-5, elaborado pela Associação Psiquiátrica Americana (APA): exatamente por faltar a este a objetividade esperada para um manual de transtornos mentais do século XXI. Objetividade esta, diga-se de passagem, desejada com o mesmo ardor pela indústria farmacêutica. Num mundo em que os transtornos mentais forem entendidos, diagnosticados e tratados como doenças do cérebro, as pessoas consumirão mais e mais medicações. Talvez não estejamos muito longe disso. Ou, quem sabe, este já seja o nosso mundo...
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