E a "guerra do TDAH" continua...
Psicologia

E a "guerra do TDAH" continua...


No dia 14 de Junho a Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo publicou no Diário Oficial da cidade a Portaria n° 986/2014 que, desde então, esteve no centro de uma polêmica que envolve de um lado o Fórum sobre a Medicalização da Educação e da Sociedade e a Associação Brasileira de Saúde Mental (ABRASME) e, de outro a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e a Associação Brasileira do Déficit de Atenção (ABDA) com o apoio do colunista da revista Veja e polemista profissional Rodrigo Constantino. Como no caso em que analisei anteriormente, o que está em jogo, mais uma vez, é o diagnóstico e o tratamento do Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Ou seja, a guerra a que me referi no outro post continua... 


Mas antes de analisarmos as posições dos dois lados desta polêmica, analisemos com cuidado a referida Portaria (e recomendo que você faça o mesmo, clicando aqui). Logo de cara é possível observar que tal portaria tem como objetivo instituir o Protocolo de Uso de Metilfenidato, estabelecendo o protocolo clínico e a diretriz terapêutica para o emprego deste fármaco no âmbito da Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo. Para quem não sabe, metilfenidato é um remédio psicoestimulante usado para tratar o TDAH, sendo mais conhecido por seus nomes comerciais: Ritalina ou Concerta. Pois bem, esta portaria, que revoga a portaria 1.940/2007 visa, enfim, regulamentar a prescrição de tal medicação no âmbito da secretaria de saúde do município de São Paulo (e somente nesse âmbito, ou seja, se a pessoa for atendida pelo sistema privado tal portaria não possui qualquer efeito). Nada mais e nada menos que isso. 


Na Introdução à tal protocolo, os autores apresentam brevemente alguns conceitos e dados referentes ao TDAH. Importante apontar que em nenhum momento o documento nega a existência do transtorno ou questiona sua condição de patologia, como alguns críticos do processo de medicalização defendem (não eu: para mim, o TDAH passou a existir a partir do momento em que foi inventado, como já escrevi anteriormente). Pelo contrário, o protocolo trata o TDAH como uma doença real, mencionando apenas que existem algumas controvérsias e exageros relativos ao diagnóstico e ao tratamento da patologia. Nesse sentido, em um trecho polêmico, a portaria alerta que "muitos problemas escolares e alguns sintomas como desatenção e hiperatividade são tratados como TDAH. Deve-se considerar ainda que há controvérsias quanto ao diagnóstico e aos enfoques terapêuticos. O diagnóstico e tratamento desses casos exigem consideração de múltiplos fatores que podem levar crianças à manifestação de sintomas, tanto no processo de avaliação quanto nas estratégias de intervenção, que visam a integração dos aspectos sociais, escolares, emocionais e outros. A prioridade do tratamento farmacológico leva frequentemente ao enfraquecimento das abordagens psicossociais necessárias tanto para o diagnóstico quanto a terapêutica". Traduzindo em miúdos, o que este trecho aponta é para uma preocupação com relação ao diagnóstico equivocado e exagerado de TDAH assim como para um entendimento de que este deve ser realizado por uma equipe multiprofissional e o tratamento não deve se restringir à prescrição de metilfenidato, incorporando também abordagens psicossociais - na verdade, em alguns casos somente o tratamento psicossocial seria indicado. 


Como aponta o Protocolo em certo momento, "o envolvimento dos pais e consulta com aqueles envolvidos no cuidado da criança, como professores, é indispensável para facultar enfoque consistente e permanente para o tratamento. Se estratégias psicossociais falham, o tratamento farmacológico está indicado". Ou seja, em primeiro lugar o documento recomenda intervenções nos âmbitos familiar e escolar. Caso tais intervenções não gerem o efeito desejado, isto é, a remissão ou diminuição dos sintomas, aí o tratamento medicamentoso é recomendado. Em alguns casos, a partir de uma avaliação da equipe multidisciplinar pode ser recomendado o tratamento conjunto, ou seja, abordagens psicossociais mais intervenção medicamentosa. Como aponta o protocolo, "o tratamento farmacológico deve ser considerado somente depois de levantamento detalhado da história da criança ou jovem e avaliação por equipe multidisciplinar em Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Infantil ou serviços com vínculo com o SUS, combinado com intervenções terapêuticas de natureza psicossocial e de educação". Resumidamente, este é o conteúdo da polêmica portaria. Obviamente deixei de lado muitos detalhes, que você pode conferir diretamente no documento, mas o essencial, penso, foi exposto.


Em nota, a Associação Brasileira de Saúde Mental (leia aqui), apoiou a iniciativa da Secretaria Municipal de São Paulo, argumentando que tal portaria "merece da comunidade científica e da população geral o mais irrestrito apoio, na medida em que visa proteger a nossa população das consequências patogênicas do tratamento não criterioso dos comportamentos rotulados como transtorno de déficit de atenção e hiperatividade". Na mesma direção, o Fórum sobre a Medicalização da Educação e da Sociedade, veio à público (leia aqui) manifestar seu apoio à portaria, afirmando que ela "reflete estudos desenvolvidos pela Anvisa e que apontam para o aumento desmedido do uso do Metilfenidato no Brasil em anos recentes e no quadro internacional, assim como para a baixa qualidade metodológica dos estudos que atestam a segurança e a eficácia do tratamento de TDAH com o uso do mesmo fármaco e a preocupação de categorias, como a dos farmacêuticos, sobre a dispensação desse medicamento".

Já a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), assim como a Associação Brasileira do Déficit de Atenção (ABDA), criada por pais e portadores de TDAH (e, curiosamente, patrocinada por fabricantes de metilfenidato), não gostaram nem um pouco dessa portaria. Em primeiro lugar criticam a ideia, exposta no documento, de que existe uma controvérsia em torno do diagnóstico e tratamento do TDAH. Em uma "Carta aberta à população" (leia aqui) tais associações voltaram a dizer o que já disseram em outras ocasiões: que não há nenhuma controvérsia com relação ao TDAH. O que é curioso é que eles sempre precisem vir à público para negar a existência de controvérsias. Afinal, se elas não existissem por que, afinal de contas, eles precisariam sempre e continuamente negá-las? Em segundo lugar, tal carta critica especialmente a burocratização que a portaria poderia gerar. Como afirmam em determinado momento, "a portaria no 986/2014 da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo é restritiva, burocratiza o acesso digno ao tratamento, principalmente à população com desvantagem social, e se posiciona contra a sistematização científica de maneira mistificadora e indigna". 

Analisemos: tal portaria realmente restringe e burocratiza o acesso ao "digno tratamento"? Não creio. Se entendermos tratamento como sinônimo de tratamento médico/ medicamentoso, aí talvez eles tenham razão. O acesso direto à medicação, anteriormente possível com a simples prescrição do médico, é restringida. Mas tal portaria entende (e defende) uma concepção ampliada de tratamento, entendido não como sinônimo de tratamento médico, mas englobando também diversas outras abordagens, denominadas psicossociais. Assim, o que a portaria faz é ampliar e não restringir o tratamento! E isto aponta para uma visão do TDAH não simplesmente como um problema cerebral passível de ser tratado farmacológicamente, mas como um problema da pessoa como um todo em sua relação com o meio físico e social em que ela vive. Tal portaria parece entender que qualquer intervenção efetiva nesse campo deve levar necessariamente em conta a família e a escola.


Mas o que realmente parece ter incomodado a ABP é que a autoridade médica, com esta portaria, é colocada em xeque. Agora, pelo menos no âmbito da Secretaria de Saúde de São Paulo, não é mais o médico sozinho que realiza o diagnóstico e decide o melhor tratamento para o paciente. Esta autoridade agora passa a ser dividida ou compartilhada com outros profissionais - não só da área da saúde mas também da educação. E isto não deixou a corporativista ABP nem um pouco feliz. Na referida carta, a associação afirma que tal portaria impõe restrições "ao pleno exercício e autonomia da medicina" e se colocam em defesa da "liberdade de exercício de nossas profissões". Segundo o presidente da ABP, nesta reportagem tal portaria representa um "patrulhamento do nosso trabalho. É censura à prescrição e um processo ideológico. Se há excesso no uso de ritalina não é problema médico, mas policial e de vigilância sanitária" (como assim o excesso de Ritalina não é um problema médico? Como assim??? Quer dizer então que somente o consumo ilegal, ou seja, sem prescrição médica, é preocupante? E o consumo excessivo de remédios prescritos? Isto não tem nada a ver com a medicina?).  Já a mãe de um portador e membro da ABDA afirma, na mesma reportagem que "o diagnóstico e a prescrição do medicamento cabem ao médico. É incompreensível que ele perca essa autonomia. É verdade que o tratamento deve envolver profissionais de outras áreas, mas a maioria desconhece TDAH e não há nenhuma iniciativa para sua capacitação". 


Deixa eu ver se eu entendi direito: então quer dizer que somente os médicos tem conhecimento e capacidade para diagnosticar e intervir nestes casos? Discordo veementemente dessa posição, que além de endeuzar a profissão médica é extremamente reducionista, na medida em que reduz o problema da hiperatividade/ distração a um problema biomédico/ cerebral - para a felicidade da indústria farmacêutica! Nesse sentido não posso discordar de José Ruben de Alcântara Bonfim, um dos redatores da medida e médico da assistência farmacêutica da Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo quando afirmou, na mesma reportagem, que "os médicos não podem achar que têm poder exclusivo de diagnóstico". Eu diria mais: os médicos não podem achar que são os únicos profissionais do campo da saúde. Também não podem achar que somente eles tem capacidade para lidar com tais questões. Afinal, problemas complexos exigem soluções complexas. E é nesse sentido que vejo com muito bons olhos a Portaria 986/2014, que pode e deve inspirar iniciativas semelhantes em todo o Brasil.



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