Sobre Psicologia, religião e outras misturas
Psicologia

Sobre Psicologia, religião e outras misturas



Um dos principais argumentos utilizados pela "psicóloga cristã" em sua defesa - com razão, tenho que admitir - é que ela não é a única psicóloga que mistura psicologia e religião. Várias associações brasileiras estão aí para provar. Listo abaixo algumas delas:



Sobre esta problemática, o CFP divulgou, em Fevereiro deste ano, uma nota pública “de esclarecimento à sociedade e às(o) psicólogas(o) sobre Psicologia e religiosidade no exercício profissional” (leia na íntegra aqui). Logo no início, é dito que “não existe oposição entre Psicologia e religiosidade, pelo contrário, a Psicologia é uma ciência que reconhece que a religiosidade e a fé estão presentes na cultura e participam na constituição da dimensão subjetiva de cada um de nós. A relação dos indivíduos com o ‘sagrado’ pode ser analisada pela(o) psicóloga(o), nunca imposto por ela(e) às pessoas com os quais trabalha”.


Em outro trecho, o CFP afirma que, segundo o Código de Ética, os “serviços de Psicologia devem ser realizados com base em técnicas fundamentados na ciência psicológica e não em preceitos religiosos ou quaisquer outros alheios a esta profissão”. O documento finaliza com a seguinte afirmação: 

"A Psicologia como ciência e profissão pertence à sociedade tendo teorias, técnicas e metodologias pesquisadas, reconhecidas e validadas por instâncias oficiais do campo da pesquisa e da regulação pública que validam o conjunto de formulações do interesse da sociedade. Os princípios e conceitos que sustentam as práticas religiosas são de ordem pessoal e da esfera privada, e não estão regulamentadas como atribuições da Psicologia como ciência e profissão".


Tudo isto soa muito bonito na teoria: ciência é ciência e religião é religião; psicologia é ciência e, portanto, não pode se misturar com nenhuma religião ou misticismo; os psicólogos devem se utilizar somente de técnicas fundamentadas cientificamente e reconhecidas por instâncias oficiais. E zéfini! Mas será que, realmente, é assim que acontece? Primeira questão: será que a Psicologia é realmente uma ciência? É uma questão muito complexa mas, sob o risco de ser leviano e não entrando em pormenores teóricos, arrisco uma resposta: em grande parte não! Afinal, quem de fato faz ciência na Psicologia? Um psicólogo clínico atendendo em seu consultório é um cientista? Obviamente não. Ele pode até se embasar em estudos científicos, mas o atendimento em si não tem como ser científico. É uma relação humana individualizada e complexa, sujeita a diversos "viéses". Não há controle. É uma relação de ajuda, não de investigação científica. 

Neste sentido, levar a cabo o princípio da cientificidade na Psicologia, significaria excluir grande parte das teorias e atuações psicológicas. Afinal, a psicanálise, por exemplo, é uma ciência? Muitos psicanalistas afirmam categoricamente: não! Mas isso desmerece e tira toda a legitimidade das teorias e práticas psicanalíticas, amplamente disseminadas no Brasil? Claro que não. Enfim, se o CFP resolver cassar o registro profissional de todos os psicólogos que não praticam ciência, vai sobrar muito pouca gente. Mas também permitir que qualquer psicólogo diga ou faça qualquer coisa também não me parece correto. É preciso haver uma regulamentação.

E aí, chegamos em uma questão crucial: quais são, afinal, as tais "teorias, técnicas e metodologias, pesquisadas, reconhecidas e validadas", referidas na nota pública do CFP? Existe, por acaso, alguma resolução que liste ou indique quais "teorias, técnicas e metodologias" são permitidas de serem empregadas pelos psicólogos? Na contramão, existe alguma resolução que especifique quais "teorias, técnicas e metodologias" estão fora do âmbito da Psicologia e, portanto, caso sejam utilizadas, configurariam infração pelo psicólogo? Mais uma vez a resposta é negativa. 


Em 1994 o CRP-03, da Bahia, chegou a emitir uma resolução vetando ao psicólogo a publicidade de algumas práticas ditas "alternativas", tais como astrologia, numerologia, cristaloterapia, terapia energética, psicoterapia xamânica, psicoterapia esotérica, terapia da transmutação energética, terapia regressiva de vidas passadas, psicoterapia espiritual, terapia dos chacras, terapia dos mantras, terapia de meditação, psicoterapia do corpo astral e trabalho respiratório monhâmico (fonte). Interessante constatar que o que foi vedado foi a publicidade, não o emprego de tais práticas.

No ano seguinte, o CFP publicou a Resolução 016/95, que mantinha a orientação do CRP-03 e acrescentava outras práticas: tarologia; quiromancia; cromoterapia; florais; fotografia kirlian e programação neurolingüística. Posteriormente, a PNL foi retirada desta resolução, tornando-se uma prática "reconhecida". No entanto, pelo que pesquisei, tal resolução foi revogada. Desconheço os motivos. Em 2000, o CFP emitiu uma resolução autorizando e regulamentando o uso da hipnose como técnica complementar ao trabalho do psicólogo e, em 2002, foi a vez, da acupuntura. Desta forma, somente a hipnose e a acupuntura são regulamentadas pelo CFP como práticas complementares. Todas as outras técnicas "alternativas" não são, legalmente, nem permitidas nem proibidas. No entanto, existe um entendimento extra-regulamentar dos CRPs e do CFP sobre as terapias "alternativas" e sobre a "mistura" psicologia-religião: eles são contra! Não sabem muito bem porque, mas são contra mesmo assim. Só que, a despeito desta posição crítica dos conselhos, muitos e muitos psicólogos continuam a se utilizar de técnicas e abordagens místico-religiosas, alheios a toda esta discussão. 


Para finalizar este post, gostaria de citar aqui dois trechos da conclusão da tese de doutorado “As terapias alternativas no âmbito da Psicologia: conflitos e dilemas” (disponível aqui), defendida em 2010 pela minha amiga e ex-colega de trabalho, Rosana Cognalato no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

“Diante de toda essa diversidade que é a psicologia e diante da sua pretensa cientificidade, ela se apresenta como um território fértil para a utilização das ‘terapias alternativas’, o que deixa os Conselhos numa situação bastante desagradável, tendo em vista que a sua função é a de resguardar a identidade/especificidade e a dignidade legítima dessa profissão. É como se os Conselhos quisessem que a psicologia fosse o que ela ainda não é, mas precisa ser, para ser uma profissão séria, funcional e competente. O que traz a noção implícita de que seriedade e cientificidade são sinônimos, indissociáveis.

E conclui: "A relação da psicologia com as terapias alternativas, a partir da sua constituição enquanto 'ciência', de forma tão própria e tão especial, a tornou uma precursora, diante da sua atração pelo 'alternativo'. A cientificidade cambaleante da psicologia a coloca numa condição dubiamente conflitiva e confortável, a partir das indefinições que as terapias alternativas suscitam, e que estão mais explícitas na psicologia do que em qualquer outra ciência. Independente disso, todas elas 'misturam'. Nenhuma ciência é pura".


Update 08/08/12: No dia 7 de Agosto, o blog do jornalista Paulo Lopes, publicou a seguinte notícia: "CRP de Minas adverte grupo que mistura psicologia com religião" (leia aqui).O grupo em questão é o CPPC mencionado acima. Esta notícia só confirma o que eu disse: que o CFP e os CRPs não toleram misturas entre Psicologia e Religião. Se isto é bom ou ruim, cabe o debate...



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