Precisamos Falar Sobre o Kevin
Psicologia

Precisamos Falar Sobre o Kevin


Nós precisamos falar sobre o Kevin. Precisamos mesmo? Precisamos. Kevin é o pesadelo em forma de filho, é um jovem capaz de inspirar os piores receios sobre a maternidade: é malcriado, agressivo, dissimulado, grosseiro. Kevin é um caso sério, realmente precisamos falar sobre ele. Mas como? Lendo análises sobre o filme, me perguntei sobre o quanto buscamos a razão de tudo. Dar uma explicação para o inexplicável nos deixará mais seguros? Explicar? Não temos aqui essa pretensão. Por agora, vamos compartilhar diversos olhares e reflexões para provocar em cada leitor a vontade de assistir ao filme.

Esse filme é um drama de fato impactante e perturbador, que promove um mergulho no submundo da relação conturbada de uma mãe com um filho que ela nunca desejou ter e que por conta disso, não sabia como amá-lo. Adaptado do romance de Lionel Shriver, o filme é uma experiência dilacerante e impossível de apagar da mente depois de encerrada a sessão. A intensa experiência de assistir ao longa vai acompanhá-lo por dias, mesmo semanas depois de vê-lo.

A Eva jovem é uma mulher livre e de espírito alegre a correr o mundo atrás de aventuras. Na cena de abertura ela está mergulhada no vermelho vivo dos tomates em uma celebração de colheita tradicional na Itália. Um salto no tempo e a atriz incorpora a dor, o desamparo e o sofrimento de uma mãe constantemente agarrada à esperança de que suas impressões sobre o filho estejam equivocadas. E, no tempo presente, a vemos como um resquício de mulher tentando sobreviver à tragédia e rejeição.

Inicialmente, o filme mostra a vida de Eva, visivelmente abatida, solitária, depressiva e socialmente marginalizada, sem deixar, no entanto, um motivo aparente. A história é contada a partir de flashbacks para que se possa entender o porquê do sofrimento que Eva tanto carrega nos olhos. A partir daí a trama transita entre passado e presente e vamos sendo apresentados ao desenrolar dos eventos que causaram todo o pesar na vida dessa personagem: um crime, cometido pelo filho mais velho em uma escola. Mas que crime? Por quê?

Diante desse exercício magistral de culpa e horror que se desenrola diante dos olhos do espectador, surgem vários questionamentos. O que levou Kevin a cometer esse crime? É justo condenar a mãe de Kevin pelos atos dele? Precisamos falar sobre Kevin retrata a história de uma família que não consegue falar sobre Kevin, muito menos reconhecer a gravidade do comportamento dele.

Eva era uma linda mulher, independente, casada, bem-sucedida na sua carreira de escritora, quando sua vida perfeita muda radicalmente com a gravidez, que era desejada pelo marido, mas visivelmente rejeitada por Eva. Ela não desejava ser mãe, mas sua barriga crescia a cada mês, e por conta disso, abdicou de sua carreira e sonhos. Desde antes do parto, a maternidade parece se configurar como um fardo muito difícil de ser carregado. Nosologicamente, é nítido que Eva encontra-se em uma profunda depressão pós-parto; contudo, o filme vai muito além disso, mostrando todos os desdobramentos do mórbido encontro entre características inatas e um ambiente pouco favorável. O parto surge como um momento doloroso, extremamente difícil, um fardo repleto de sofrimento e desgosto. Há uma rejeição pela chegada do bebê, os braços inábeis de Eva não sabem sequer acolher o pequeno Kevin, resultados dessa possível depressão pós-parto.

A depressão pós-parto é uma depressão moderada ou grave que pode ocorrer logo após o nascimento ou até um ano depois. Na maioria das vezes, ocorre dentro de 3 meses após o parto.

Kevin, filho de Eva, vem ao mundo nos braços gélidos e inábeis de sua mãe devastada. O filme mostra as interações crescentes de violência entre os dois ao mesmo tempo em que entrecorta as imagens com tentativas da mãe de reparar, seja raspando a tinta vermelha jogada em sua casa após a tragédia, seja na infância de Kevin, quando tentava ser amável com ele.

O desapego e desinteresse de Kevin pelo mundo fica nítido em diversos momentos e em situações de seu desenvolvimento. Kevin cresce com diversas manifestações de crueldade, desprovido de qualquer empatia, primeiramente contra sua mãe e depois contra seus colegas de escola.

Os atos de violência são recíprocos e predominantemente substituem quaisquer outras formas de demonstração de afeto entre os dois. Seu relacionamento não é penetrado por ninguém, seja pelo pai, seja por outras pessoas. A ausência do pai é constante durante toda a história e mostra-se na sua incapacidade de dar-se conta da agressividade de Kevin em pequenos eventos da infância, sempre amenizando como "coisas que meninos fazem".

Ao longo da trama a sensação constantemente sentida é que Kevin é um ser repugnante, desprovido de empatia e carisma, que nasceu somente para causar o sofrimento da mãe. O personagem é apresentado em três “estágios” de desenvolvimento, o que enriquece ainda mais a trama, mostrando a personalidade forte do garoto desde o nascimento.


Uma das cenas mais simbólicas e angustiantes do filme mostra essa mãe com esse filho, ainda bebê, que não parava de chorar um minuto sequer. Não é incomum pais entrarem num surto de estresse com choro de crianças. No filme, a mãe não chega a nenhum radicalismo, mas está sempre a um segundo de explodir. Nessa cena, ela passeia por uma rua movimentada da cidade com o bebê no carrinho. Ele vem chorando há dias. A mãe não dorme, não vive, apenas escuta o choro incessante da criança. Até que ela passa por trabalhadores que estão fazendo reparos em bueiros no meio da rua. Trabalho pesado, barulhento, infernal. Ela sai da calçada com o carrinho e chega bem perto do trabalhador que está perfurando o asfalto com uma britadeira. Estaciona o carrinho ao lado da britadeira que faz um barulho torturante. Close em seu rosto: por um instante, ela tem o conforto de trocar o choro do filho por outro ruído que, aos seus ouvidos, soa como um solo de flauta. Não é que a mãe de Kevin não aguentasse mais o barulho do choro: ela não aguentava mais o barulho da própria culpa por ser incapaz de cumprir o papel de mãe amorosa e abnegada daquele pequeno demônio de fraldas. O que temos em evidência é a incapacidade materna.

Ao atingir idades entre quatro a dez anos, Kevin demonstra ser uma criança cada vez mais irônica, sádica e irritante. Evitando a mãe o tempo todo, esquivando-se das tentativas que Eva construía para interagir com ele ou provocando-a com respostas negativas e sarcásticas. Não há uma demonstração de afeto entre os dois, apenas a violência recíproca e a falta de sentimentos positivos.

No desenrolar da trama surgem as dúvidas dos motivos que levaram Kevin a desenvolver esse comportamento doentio. O garoto não só demonstra sinismo e antipatia, mas uma crueldade infindável. Se antes levamos em consideração o relapso da mãe, a inépcia dos pais no cuidado do filho, resultando no comportamento agressivo de Kevin, logo deixamos de observar apenas este lado e obtemos a certeza de que o problema é mais complexo.

Mas então, existe realmente um culpado ou isso se estende no subjetivo de cada pessoa? Somente os pais são os culpados pelas condutas violentas das crianças e jovens? É possível que, ao sentir-se que não foi desejada, a criança possa desenvolver uma conduta de violência? O que é a psicopatia? Existe justificativa para aquilo que não tem explicação? O filme tenta responder essa pergunta, mas não dará nenhuma resposta, não diretamente, mas as deixarão soltas, para que as pessoas que o vejam reflitam sobre as questões familiares.

Sabemos que a relação da mãe com o filho é extremamente importante para a constituição da criança como sujeito e da sua relação com o mundo, isso porque a família é o primeiro grupo em que a criança está inserida, e é daí que partirão os princípios e valores. Está nos pais a base psicológica da criança, no entanto, o meio externo também influenciará na conduta desta, além de predisposições genéticas. É nesse momento que os olhares viciosos deixam de existir, aqueles que só culpam a criança “birrenta” que é Kevin, e chega-se à conclusão que o filme não tem o objetivo de definir o papel do vilão e da vítima.

Este talvez seja o principal objetivo do filme, manter seus espectadores num cenário onde não é permitido juízo de valores. É preciso observar cada cena, cada acontecimento de forma profunda, uma vez que é isso que dará a resposta para as perguntas feitas no começo: Qual o motivo desse crime? O que faltou na vida de Kevin? Ele não possui nenhum trauma evidente: abuso sexual, violência física, presenciou algum crime ou foi vitima de algum acidente grave... Esses questionamentos surgem ao longo da história cada vez mais fortes, porque é isso que a trama provoca; uma série de perguntas e respostas que ora se perdem ora se completam.

Este é um filme emocionalmente pesado que traz à tona inúmeras questões a serem discutidas do ponto de vista do relacionamento entre pais e filhos, da colocação de limites, da repercussão da dificuldade de comunicação de afetos entre mãe e filho, dos possíveis problemas decorrentes da depressão pós-parto e da dificuldade dos pais em entrar em contato com aspectos cruéis de seus filhos. Teria Kevin se beneficiado, assim como sua mãe, família e por final toda a sociedade, se suas dificuldades tivessem sido abordadas o mais cedo possível? Poderia uma abordagem terapêutica com foco na interação mãe-bebê ter alterado favoravelmente o curso de seu desenvolvimento? Qual seria o papel dos terapeutas, psicólogos e psiquiatras em situações como as descritas no filme? Até que ponto a ausência de um trabalho terapêutico focado no entendimento desse relacionamento e na expressão do afeto poderia ter alterado o desfecho fatal? Ainda não sabemos quanto do comportamento antissocial é decorrente do ambiente e quanto já é inato ao indivíduo. Essa angústia, infelizmente, seguirá conosco mesmo após o final do filme.

Aparentemente a família de Kevin é extremamente normal, na sua superfície, mas com sérios problemas de convivência. Não há limites na criação de Kevin. Enquanto Eva é a única que vê a crueldade do filho, o pai fecha os olhos e deixa passar todos os problemas que estão gritando por todos os cantos da casa. Embora a mãe tenha conhecimento do comportamento violento do filho, ela também não procura solução, não se atinge a problemática do assunto.

Não há limites, não há diálogos. Os pais estão presentes, mas não enxergam, em nenhum momento, as necessidades emocionais do filho. Não falam sobre o Kevin, não falam com o Kevin sobre o que está havendo. Eva e Franklin mantiveram-se distante dele diversas vezes, fechando os olhos para a patologia que estava diante de seus olhos.

Ao contrário do que se possa imaginar, Kevin não cometeu suicídio após perpetrar o terror em sua escola. Isso não seria, até mesmo, condizente com o olhar desafiador e arrogante que ele manteve por boa parte de sua vida. Ele calculou tudo, queria ir para a prisão. Só não sabia, talvez, que condenaria também a sua mãe a uma espécie de prisão.

O ato de covardia de Kevin é ainda maior porque não é ele quem tem que encarar as pessoas e o peso da culpa após cometer esse crime. Este sofrimento cabe à sua mãe. O filme é certeiro em analisar friamente cada ato e cada falha de Eva como mãe. Mas, é ela que permanece ao lado do filho no final. O roteiro passa a mão na cabeça do pai compreensivo, Franklin, até a última cena – fazendo até parecer normal que tenha sido ele a pessoa a estimular o hábito de arco e flecha do filho que se revelaria o modus operandi do crime que ele cometeu.

Ao final da obra a sensação de cansaço e de peso nos ombros atinge de tal maneira que se passa dias relembrando as cenas fortes mostradas no filme. E os questionamentos continuam perambulando na mente. E sabemos que; Precisamos falar sobre o Kevin, precisamos falar com o Kevin, precisamos falar com a Eva, e precisamos falar com o Franklin, pois na realidade, é difícil definir um verdadeiro culpado.

Referências: Psicologia e Cinema, Cinefila Por Natureza, EnCena, RBP




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