A raiva e a patologização do normal
Psicologia

A raiva e a patologização do normal


A Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) publicou hoje, em sua página no Facebook, esta pequena nota, transcrita na íntegra abaixo:

"A personagem Carminha, vivenciada pela atriz Adriana Esteves na novela Avenida Brasil, da TV Globo, tem mostrado constantes situações de humor, enquanto Nina (Débora Falabella) tenta continuar com o plano de vingança. Embora a situação seja de ficção, muitas pessoas encontram a raiva como um desejo supremo de satisfazer uma vontade interior. É bom lembrar que em sinais de descontrole visitar um especialista pode evitar que um pequeno problema emocional se torne uma tragédia" (confira aqui): 

Então quer dizer que os psiquiatras agora tratam raiva também? Eu não sabia que raiva tinha virado transtorno. Eu pensava que era uma coisa da vida. Ruim, certamente, mas parte da vida, assim como a tristeza, a inveja e o rancor. Devo estar enganado. Ironias à parte, gostaria de destacar que esta nota é muito representativa daquilo que o psiquiatra Octavio Serpa Jr. (fonte) chama de processo de patologização no normal, em curso no mundo contemporâneo. Este processo é facilmente constatável ao se observar a evolução dos principais “manuais de doenças”, utilizados internacionalmente na medicina e na área “psi”: o CID (Classificação Internacional de Doenças) e o DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais), o primeiro já na décima versão (CID-10), caminhando para a décima primeira, enquanto o segundo na quarta (DSM-IV), caminhando para a quinta. Ao analisar o movimento de uma versão para a seguinte e da primeira versão para a última, como fez Serpa Jr, podemos verificar um aumento considerável no número de doenças e transtornos catalogados. As próximas versões destes manuais provavelmente ampliarão ainda mais o número e a amplitude daquilo que “cientificamente” é considerado patológico. 

Um bom exemplo deste processo de patologização do normal pode ser encontrado no livro A tristeza Perdida (Ed. Summus, 2010), onde os autores Allan Horwitz e Jerome Wakerfield, demonstram como a psiquiatria “científica” moderna patologizou a tristeza normal através do desenvolvimento de critérios diagnósticos que se baseiam exclusivamente nos sintomas apresentados pelo paciente, ignorando o contexto em que eles apareceram e se mantém. Argumentam que, no principal manual de transtornos mentais, o DSM-IV, a única circunstancia que inviabiliza o diagnóstico de transtorno depressivo é o luto. Todas as outras circunstancias negativas, a que qualquer pessoa está exposta – como o fim de um relacionamento amoroso, a perda de um emprego, a descoberta de uma doença grave, etc. – são ignoradas na realização do diagnóstico psiquiátrico. Desta forma “toda reação triste envolvendo um número suficiente de sintomas especificados durante pelo menos duas semanas será erroneamente classificada como transtorno, ao lado de alterações psiquiátricas genuínas”. Assim, a tristeza normal, “natural” e necessária em certos contextos, vem sendo confundida com depressão. Porém, afirmam os autores, que a “separação entre tristeza normal e transtorno depressivo é sensata e legítima; é de fato crucial. É coerente não só com a distinção entre normalidade e patologia usada na medicina e psiquiatria tradicional, mas também com o bom-senso, e tem relevância clínica e cientifica. No entanto, a psiquiatria contemporânea tem ignorado em grande parte tal distinção”. Daí, argumentam, os altos índices de depressão “identificados” em levantamentos epidemiológicos. Segundo eles, isto reflete muito menos a realidade endêmica do problema e muito mais a ampliação e a banalização do diagnóstico moderno de depressão. 

Neste sentido, vários autores apontam que pouco se tem refletido, especialmente na formação na área da saúde, sobre a diferença entre normal e patológico ou entre saúde e doença. Identificamos, como Serpa Jr, a falta “de uma sólida discussão conceitual e prática acerca da fronteira entre o normal e o patológico”. Observa-se que, para muitos profissionais, doenças físicas e – o mais problemático – transtornos mentais, são considerados entidades objetivas, dotadas de vida própria e dispostas a quem quiser enxergar. Parecem desconsiderar as determinações sociais, políticas e econômicas – vide o forte lobby da gigante indústria farmacêutica sobre os médicos e outros profissionais da área da saúde e sobre a sociedade de uma forma geral – que contribuem para as atuais definições de normal e patológico. E ainda, afirma Serpa Jr., “na medida em que é flutuante esta demarcação, o debate acerca do normal e do patológico se atualiza constantemente, exigindo daqueles que militam na Clínica um esforço permanente de reflexão”. Porque se não refletirmos profunda e constantemente, corremos o risco de confundir emoções da vida, como a raiva e a tristeza, com transtornos mentais passíveis de serem tratados com medicamentos. 



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